- Escrito por Helena Tourinho
A habitação é uma das principais premissas da arquitetura. Para muitos, o abrigo é um de seus denominadores principais. Dentro das cidades, é pauta premente e complexa. De todo modo, as iniciativas de habitação com interesse social tentam dar conta de abrigar uma parcela considerável da população, para garantir que usufruam dessa premissa-primeira da arquitetura: uma casa.
Habitação social coloca-se como uma questão dual: oferece tanto a oportunidade de experimentações arquitetônicas em média e grande escala – como o Pedregulho de Affonso Eduardo Reidy, contemporâneo do Unite d’Habitation de Le Corbusier, ou o finado (e fracassado) Pruitt-Igoe, de Minoru Yamasaki –, bem como pode representar a voracidade construtiva e reificadora do mercado imobiliário com construções econômicas em termos de materiais e qualidade de execução.
Considerando-se que o campo disciplinar da arquitetura (idealmente) deve estar embasado em uma ética social – ou seja, cumpre uma determinada função, que serve aos seus ocupantes – e que ele é essencialmente multidisciplinar – situado em um contexto físico que depende de recursos outros, de outras áreas – e seguindo os preceitos atraentes da inovação da forma e dos materiais, cabe perguntar como a arquitetura aplica essas considerações em habitações de interesse social.
Frente a uma precariedade econômica, especificamente no caso brasileiro, junto com urgências ambientais, é possível fazer uso de materiais econômicos, que respeitem o conceito de circularidade e que ainda assim resultem em projetos relevantes formalmente? Atualmente, práticas construtivas chamadas “vernaculares” estão sendo retomadas, e isso inclui repensar os materiais utilizados nas construções.
Ao se cogitar materiais ambientalmente responsáveis próprios para construção, a madeira definitivamente se apresenta como uma opção. Seria possível que esse material respondesse satisfatoriamente a um contexto de habitação de interesse social – grande escala e com custo reduzido? Ao que tudo indica, sim. Contudo, essa posição envolve reconsiderar parte da mentalidade construtiva e projetual bem como suas implicações.
Casas em madeira não são novidade no Brasil, mas perderam espaço para a plasticidade do concreto. Se a ideia é frear a degradação ambiental, a matéria-prima deve agredir menos a natureza, tanto em sua produção quanto em seu descarte. Sendo assim, a madeira pode ser retomada como elemento construtivo principal. Mais leve que o concreto, requer menos material de fundação, o que poderia significar uma economia no processo construtivo. Ademais, a procedência da madeira incentivaria florestas plantadas, que contribuem para o sequestro de carbono na atmosfera. A discussão iminente sobre o mercado de carbono pode servir de incentivo para que parte do território seja reflorestado. Isso não quer dizer que o mercado de carbono não tenha uma série de considerações e minúcias geopolíticas, mas não deixa de ser uma oportunidade.
Normalmente, não se associa a madeira a contextos pré-fabricados, mas já existem processos industriais que fazem uso dela para a criação de paineis e elementos estruturais como peças prontas para montagem. Nos países do norte global, o uso de peças CLT (cross laminated timber, madeira laminada cruzada, em português) já são amplamente utilizados, bem como o sistema plataforma, prioritariamente utilizado nos Estados Unidos, que consiste em um conjunto de estrutura, montantes e paineis, semelhante ao dry-wall, mas em madeira maciça e paineis de OSB. A pré-fabricação torna-se vantajosa pela rapidez e limpeza construtivas, quesitos que podem beneficiar canteiros de habitação social.
Além disso, um sistema construtivo que funciona como um esquema de “montar” também inclui a possibilidade de reconfiguração e ampliação de ambientes, o que por sua vez remete à ideia de construção incremental, popularizada pelo Elemental, de Alejandro Aravena. A pré-fabricação com matéria orgânica, que exige menos material construtivo, e que permita adições graduais feitas pelos próprios moradores a longo prazo une os lados técnico, econômico e simbólico da construção. A textura visual resultante da complementação por parte dos moradores deixa as grandes áreas habitacionais mais diversas, e mais próximas da realidade de uma cidade, que está longe de ser uniforme. Esses três quesitos já se enunciam como uma proposição a ser resolvida formalmente, como exercício projetual que (quem sabe?) pode servir como protótipo para sistemas construtivos futuros.
Os maiores receios associados à madeira são em relação ao fogo e intempéries diversas. De fato, são pontos dignos de atenção. No caso da resistência ao fogo, a madeira pode ceder com a queima, mas não colapsa repentinamente como o aço, por exemplo. Pelo contrário, a madeira oferece certa resistência à queima. À medida que o fogo consome parte da camada externa da peça, o miolo permanece intacto por mais tempo, e o dimensionamento da peça deve considerar a porcentagem de redução dessa camada superficial. O desempenho é o mesmo princípio da madeira carbonizada, utilizada precisamente como uma forma de tratamento e proteção da madeira. Já as intempéries e os agentes xilófagos (como cupins e fungos) são os principais pontos de preocupação com sistemas construtivos de madeira. Contudo, não são necessariamente um impeditivo para uso: os devidos cuidados e tratamentos podem ser aplicados à madeira, e a avaliação e manutenção recorrentes estenderão a vida útil da construção. Como em toda construção, diga-se de passagem.
O uso da madeira para habitação social certamente não deve ser descartado. Atualmente, edifícios em altura já fazem uso de madeira engenheirada, e, em alguns casos, sem uso nenhum de concreto, como o Murray Grove de Waugh Thistleton Architects. Se a madeira deve ser a primeira opção para habitação de interesse social, é difícil dizer, já que esse programa de necessidades é extenso e detalhado. Mas ela definitivamente deve ser considerada e os métodos construtivos, desenvolvidos. Casos no exterior já exemplificam o potencial construtivo de sistemas de madeira sem perda estética e de acabamento. Canteiros experimentais universitários e parcerias empresariais fazem parte dessa mudança de paradigma. Alterar o “padrão” construtivo da habitação social passa por repensar a responsabilidade da arquitetura com seu entorno.
Este artigo é parte dos Temas do ArchDaily: O futuro da madeira.